Antropologia jurídica: Uma definição prática

por Leonardo Marcondes Alves

Depois que a OAB passou a resolução 01/09 que cobra a disciplina de antropologia em seus exames, várias universidades incorporaram esta disciplina em seus currículos como “antropologia jurídica”.

É legal encontrar juristas que saibam um pouco sobre antropologia, mas no geral noto que desconhecem a antropologia jurídica em seu sentido estrito.

Antes, é necessário desfazer alguns preconceitos:

  • Antropologia jurídica não é antropologia para profissionais de direito.
  • Antropologia jurídica não é direito para antropólogos.

Essa distinção se faz necessária porque vários livros disponíveis no mercado brasileiro apresentam títulos vistosos como “Antropologia Jurídica” ou “Antropologia do Direito” em suas capas, mas na verdade nada dizem sobre antropologia jurídica. Um manual que adquiri dá uma noção geral dos principais teóricos e conceitos da antropologia geral; entretanto, apesar do título, NADA falava sobre antropologia jurídica. Outro, pior ainda, misturava sociologia com antropologia sem seu autor se dar conta da grande incidência de parônimos entre essas duas disciplinas.

A intersecção da antropologia e do direito faza antropologia jurídica ter teorias, métodos e escopo próprios.

Antropologia jurídica é a investigação dos mecanismos de regras executáveis da sociabilidade humana por meio de métodos que empreguem teorias antropológicas, usem a interdisciplinaridade e perspectiva holística típica da antropologia, compreendam o universal pelo particular — preferencialmente por extensivo trabalho de campo.

Regras executáveis compreendem normas formais (não necessariamente positivadas) garantidas pela organização social e dotadas de poder de sanções negativas (punições) ou sanções positivas (prêmios) àqueles que desviam da normas comuns (POSPISIL 1958; NADER 1969). O estudo das regras executáveis compreendem tanto seu processo de positivação, sua conceituação ideal, sua aplicação e os desvios dessas regras.

Se violações das normas, como vestir fraque na praia de Ipanema, ou dar uma gorjeta super-generosa não acionam reações formais da sociedade organizada (por exemplo, o Estado), outras violações sim. É o caso de quem rouba galinhas ou passa em um concurso  público. Nesses casos, as regras executáveis são regidas por leis:  se cumprindo a lei, um vai para a cadeia e outro assume um cargo  público.

Vale notar que o termo genérico regras executáveis (enforceable rules) compreendem tanto as espécies regras e princípios da teoria de Ronald Dworkin (2012) ou regras e parâmetros da teoria de Pierre Schlag (1985). Sua distinção, entre outras normas, é a possibilidade de empregar o aparato executivo — de força e poder — da organização social reconhecida, inclusive além do Estado. Assim a juridicidade dessas regras, conforme se verá no teste de Pospisil, é a principal característica que define um fenômeno como jurídico. Mas, a antropologia jurídica não se limita ao estudo das normas.

A ideia de regras executáveis ultrapassa o estudo de normas, como enfocam as abordagens realistas da sociologia jurídica (SHIRLEY 1987). Ao invés de estudar somente normas recepcionadas por um sistema jurídico, a antropologia possui um foco mais genérico, envolvendo outros mecanismos de mediação jurídica, desde a vingança ao suborno até normas religiosas que resultem em resultados juridicamente significantes, mesmo que o Estado não as reconheçam como leis.

Ademais, nem todas as leis escritas são regras executáveis, pois há o fenômeno de  a lei “não pegar”, vide o Código de Trânsito e os motociclistas que costuram  entre os carros. Há também comportamentos considerados como lei mesmo sem haver nada formal, como o “depois das dez da noite, deve-se fazer silêncio” que quando não honrado, é motivo de se tirar satisfações com o vizinho. Assim, tanto o desuetudo e os costumes são tão relevantes à antropologia jurídica quanto às legislações postas e especulações doutrinárias.

Uns dos pioneiros da antropologia jurídica, E. Adamson Hoebel distinguia “uma norma social é legal se quando há ameaça ou fato negligência ou infração resulta regularmente em aplicação de forças físicas por um indivíduo ou grupo possuindo a prerrogativa socialmente reconhecida de assim agir”. (HOEBEL 1954, 28). Entretanto, outros antropólogos jurídicos expandiram o conceito de norma jurídica para incluir sanções psicológicas, como faz Leopold Pospisil: “Podemos definir uma sanção legal como um comportamento negativo de retirar alguma recompensa ou favor que de outro modo (se a lei não fosse violada) seria concedido, ou o comportamento positivo de infligir alguma experiência dolorosa, seja ela física ou psicológica”. (POSPISIL 1958, 268).

Pospisil ainda lista quatro atributos para a lei que somados definem a norma jurídica em seu sentido estrito:

  1. Autoridade: o direito socialmente reconhecido de julgar e punir formal (tribunal, líder) ou informal (parentela, autocomposição).
  2. Universalidade: a predicabilidade de ter casos semelhantes serem consistentemente punidos.
  3. Obrigação: as violações são definidas pela relação de direitos e obrigações das partes.
  4. Sanção: a punição é manifestada na forma ou de prejuízo físico, material ou psicológico ou de retirada de favores, como o banimento, a fofoca e o ostracismo.

Por ter tanto o direito positivo, costumes, doutrina, operações e relações jurídicas sob o mesmo plano, a antropologia jurídica não distingue entre o dever-ser e o ser. Nessa disciplina, tanto o abstrato e o concreto são manifestações da cultura, portanto sujeito aos mesmos métodos e teorias de análise.

antropologia jurídica.resumo

Esse conceito de lei da antropologia jurídica é mais abrangente que as concepções positivistas de lei adotada por muitos teóricos do direito. Isso difere porque na lógica positivista o Estado é o autor e executor da lei, enquanto a antropologia jurídica reconhece que há o exercício de normas legais sem necessariamente haver interferência do Estado. Dessa forma, a antropologia jurídica ocupa-se tanto do estudo do direito de sociedades “simples” vivendo às margens do Estado — indígenas, nômades, camponeses ou favelas — quanto do estudo do direito das sociedades complexas — tribunais, processos legislativos, polícia, prisões, arbitrações, operadores do direito, além da comparação entre sistemas jurídicos.

Há tópicos em antropologia que são importantes ao profissional do direito, como também há tópicos do direito que servem ao antropólogo. Algumas dessas noções comuns são o conceito pluralidade jurídica, direito socioambiental, etnicidade, dinâmicas de poder, sanções informais, mediação de comunidades de direito informal, relações Estado-indivíduo, direitos humanos, responsabilidade social corporativa, direito comparado, liberdade religiosa, liberdade de consciência em tratamento médicos, dentre outros. No entanto, por si só o conjunto desses tópicos não forma a disciplina da antropologia jurídica. É a teoria da antropologia jurídica que os articulam.

Uma simples coleta de dados em si não é antropologia. O antropólogo e sociólogo Bruno Latour passou meses assistindo às sessões de um tribunal superior francês para entender a produção da justiça pelos profissionais da lei (LATOUR, 2009). Se ele não lançasse mão da teoria, os dados coletados seriam meras descrições.

Na formulação da teoria, a antropologia jurídica pode abordar os tópicos  mencionados e  outras disciplinas, como psicologia, sociologia, criminalística, história, geografia, e claro, o direito.

Outro exemplo da prática da antropologia jurídica no Brasil, os poucos antropólogos do Ministério Público passam o tempo tentando examinar e mediar entre interesses de partes distintas. Tipicamente trabalham com causas indígenas, mas poderiam bem servir em direito de família, coletivos e difusos ou do trabalho. Sem método ou teoria antropológica, a atuação deles seria semelhante aos assistentes sociais. Porém, diferente desses profissionais, pouca contribuição dos antropólogos haveria, pois não tomariam responsabilidade pelos seus assistidos.

Por essa razão, o testemunho de um antropólogo para ter validade jurídica não se pode basear em uma entrevista e uma visita. Requer um contato intenso e prolongado com as comunidades envolvidas, além de uma interpretação cuidadosa e fundamentada dos fatos.

REFERÊNCIAS

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 2002.

HOEBEL, E. Adamson. The Law of Primitive Man: A Study in Comparative Legal Dynamics. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1954.

LATOUR, Bruno. The Making of Law –An Ethnography of the Conseil d’Etat. Cambridge: Polity Press, 2009.

NADER, Laura. Law in culture and society. Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research. Chicago: Aldine Publishing Company, 1969.

SCHELG, Pierre J. Rules and Standards, 33 UCLA L. Rev. 379 (1985).

SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987.

POSPISIL, Leopold J. . Kapauku Papuans and their law. New Haven: Yale University Press, 1958.

Como citar esse texto no formato ABNT:

Referência:

ALVES, Leonardo Marcondes. Antropologia jurídica: Uma definição prática. 2016. Disponível em: <https://ensaiosenotas.com/2012/10/30/antropologia-juridica-uma-definicao-pratica/>Acesso em: 30 out. 2012.

Citação com autor incluído no texto: Alves (2012)

Citação com autor não incluído no texto: (ALVES, 2012)

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9 comentários em “Antropologia jurídica: Uma definição prática

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  1. Estou estudando sociologia e antropologia , depois de trinta anos. Aposentada resolvi cursar Direito, acabo de fazer 84 anos, não está sendo fácil pois a memória, não é a mesma. Estou feliz por encontrar em você
    s a ajuda indispensável

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  2. Caramba, eu estava estudando por um manual de ” antropologia jurídica” que nada tinha de antropologia jurídica exatamente. Basicamente pegou termos sociológicos e antropológicos e fez um manual de pura enrolação. Aprendi antropologia, mas a jurídica tinha só um textinho sobre pluralismo jurídico. Enfim, obrigada pelo texto ❤

    Curtido por 1 pessoa

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